Por Eduardo Alves
Coordenador do Secretariado Regional de Coimbra

Deambulando pelo cancioneiro popular português, riquíssimo espólio da expressão cultural e tradicional da raiz musical popular portuguesa, na sua diversidade, conseguimos encontrar uma das canções mais misteriosas e verdadeiramente inconclusivas, que na sua idiossincrasia consegue, ainda assim, um lugar único na memória coletiva, sendo facilmente reconhecida e trauteada por todos, desde a mais tenra idade.

Já todos demos por nós a tentar perceber o sentido da letra de uma música, seja ela romântica, de baile, um reivindicativo hip-hop ou um pujante rock. Mas “A caminho de Viseu” coloca-nos num universo muito próprio.

Se numa análise musical simples, a canção se caracteriza, melodicamente, pela tonalidade de Mib, com um âmbito de 8ª Perfeita [Sib 2 – Sib 3], constituída por intervalos melódicos de 2ª (m e M), 3ª (m e M), 4ª P e 7ª m, e linhas melódicas similares nos antecedentes e consequentes de cada frase, construindo uma coerente e agradável composição, marcada pelo ritmo silábico e exclusivamente escrito em semínimas e colcheias, numa análise mais profunda ao conteúdo começam, logo nos primeiros versos, a surgir perguntas.

Perguntas às quais não se obtêm respostas, apenas possíveis deduções, sem direito a subsunção. Se, no “Atirei o pau ao gato” podemos perceber, desde logo, que o gato berra em resultado do arbítrio do autor (que constituiria hoje razão bastante para denúncia às autoridades), com uma relação causa-efeito que se poderia exacerbar ao seu extremo, acabando apenas com um efeito secundário, assustar a d. Xica, mas que, no essencial, não explica a razão da agressão ao gato; ou a clareza da razão porque temos de abrir alas para o Noddy e o seu carro amarelo, aqui ficamos sempre nesta ambiguidade, que não chega a concretizar-se.

Vejamos, o autor começa por se dar a conhecer, é um viajante com fraca autoestima que tem os seus ouvintes em fraca conta, porque parece sentir-se na necessidade de repetir tudo o que diz para ter a certeza que o percebemos, que a ação decore numa ida, que se percebe de seguida que é a Viseu. Pode ser apenas gaguez literária… Mas antes de nos conseguir dizer o que lá ia fazer (contrariamente ao “jardim da Celeste”, que tão bem nos esclarece), dá de caras com o seu amor.

A bonita cidade beirã desperta-nos a atenção, mas mais ainda nos mobiliza perceber onde é que estava o seu amor, e porque é que aí estava. Reparemos que o autor não foi ter com o seu amor, encontrou-o, num acaso! Significará isso que não teria grandes pretensões de o levar nesta ida a Viseu? Então, o que iria fazer a Viseu que não lhe interessaria levar o seu amor? Terá o seu amor descoberto algum SMS, quer dizer, no tempo em que foi escrita a canção, seria um postal ou uma carta…

Não sabemos, mas pela surpresa evidenciada pela frase “Ai Jesus, que lá vou eu!” percebemos que deve ter sido difícil de explicar, dado o subsequente uso das interjeições zus, truz, truz, zás, trás, trás, que remetem para a ideia de movimento, sugerindo, potencialmente, algum tipo de contacto físico. Porquê?

Há quem diga que escorregou e bateu com a cabeça na mesa de cabeceira para justificar um olho negro, mas o nosso autor afirma que escorregou e torceu um pé, e que lhe doeu muito. Parece suspeito, certo? E reforça o uso das interjeições zus, truz, truz, zás, trás, trás numa repetição do refrão, que nos leva a pensar se, de facto, as nossas suspeitas se concretizaram…

Bem, certo, certo, é que ambos chegaram a Viseu, sem que consigamos, no entanto, perceber se viajaram juntos, se fizeram as pazes ou se o autor teve de ir ao hospital por causa de “ter escorregado” e torcido um pé. Ou o que foi lá fazer. E porque é que não queria levar o seu amor. E onde é que encontrou o seu amor.

A última parte da canção revela-nos um autor num certo quadro passivo-agressivo, em que tanto se lamenta de que ficou aborrecido por ter regressado de Viseu, como se compraz em ter lá deixado o seu amor, como que a responsabilizá-lo por tudo o que aconteceu, numa espécie de punição, sem que exista uma comparabilidade das posições, quer do autor, quer do seu amor, para descobrir onde está a razão. Aparentemente, terem feito as pazes estará fora de questão…

E no fundo, ficamos apenas a saber que o autor foi a Viseu deixar o seu amor, tendo regressado chateado e aleijado. Continuamos é sem saber o que foi fazer a Viseu. E porque é que não queria levar o seu amor. E onde é que encontrou o seu amor.

E assim o mistério, o drama e o suspense permanecem!

E para que possam tirar as vossas conclusões, aqui fica a letra.

Indo eu, indo eu,
A caminho de Viseu,
Indo eu, indo eu,
A caminho de Viseu,
Encontrei o meu amor,
Ai Jesus, que lá vou eu!
Encontrei o meu amor,
Ai Jesus, que lá vou eu!

[Refrão]
Ora zus, truz, truz,
Ora zás, trás, trás,
Ora chega, chega, chega,
Ora arreda lá pr´a trás!
Ora zus, truz, truz,
Ora zás, trás, trás,
Ora chega, chega, chega,
Ora arreda lá pr´a trás!

Indo eu, indo eu,
A caminho de Viseu,
Indo eu, indo eu,
A caminho de Viseu,
Escorreguei, torci um pé,
Ai que tanto me doeu!
Escorreguei, torci um pé,
Ai que tanto me doeu!

[Refrão]

Vindo eu, vindo eu,
Da cidade de Viseu,
Vindo eu, vindo eu,
Da cidade de Viseu,
Deixei lá o meu amor,
O que bem me aborreceu!
Deixei lá o meu amor,
O que bem me aborreceu!
(Autor: Ayres Lopes)