Abril em Portugal antecedido por Maio em França
Por Jorge Castilho
Completaram-se no dia 17 deste mês de Abril 50 anos sobre uma data marcante para a Academia de Coimbra, mas também para a História do nosso País, pelas consequências que resultaram do que então aconteceu.
Na manhã desse dia 17 de Abril de 1969 o então Presidente da República, Almirante Américo Tomás, veio a Coimbra presidir à inauguração do edifício do Departamento de Matemática da Faculdade de Ciências, situado frente às Escadas Monumentais.
Vivia-se então a chamada “Primavera Marcelista”. Em Agosto do ano anterior Salazar caíra de uma cadeira e ficara com a saúde abalada de forma irreversível, pelo que foi substituído por Marcelo Caetano, que tomou posse a 27 de Setembro de 1968. O novo Chefe do Governo pareceu querer amenizar o regime de Ditadura que subjugava Portugal desde 1926, iniciando uma certa abertura que ele próprio classificou, nas suas “Conversas em Família” no canal único de televisão (a preto e branco), como “evolução na continuidade”. A PIDE, violenta polícia política, passou a chamar-se Direcção-Geral de Segurança. A Censura foi “baptizada” de Comissão de Exame Prévio. Mas, no essencial, só mudaram os nomes!... Mantiveram-se as práticas ditatoriais, de opressão, repressão e obscurantismo que faziam de Portugal um País atrasado e isolado. “Orgulhosamente só”, como Salazar gostava de dizer sobre Portugal, quando o País era condenado na ONU por alimentar, desde 1961, uma guerra em África, para manter as suas colónias - primeiro em Angola, depois em Moçambique e na Guiné. Aliás, nesse quase infantil esforço de cosmética, até as colónias deixaram de ser assim chamadas e passaram à designação oficial de “Províncias Ultramarinas”.
A juventude era a mais sacrificada por essa Guerra Colonial sem fim à vista, já que todos os rapazes eram chamados ao cumprimento do serviço militar obrigatório e a maioria deles enviados para uma dessas frentes de batalha, por um período mínimo de dois anos (depois de mais um ano de recruta, especialidade e treino para a guerra) onde muitos morriam, outros ficavam feridos e todos regressavam com marcas para o resto da vida.
(Estima-se que durante os 13 anos da Guerra Colonial tenham morrido nas três frentes de combate em África cerca de 9 mil militares portugueses e ficado feridos mais de 100 mil, enquanto os que regressaram traumatizados psicologicamente ascendem a várias centenas de milhares).
Um considerável número desses jovens acabaria por sair do País clandestinamente para fugir à guerra, exilando-se em diversos países europeus – mas sobretudo em França e na Bélgica, onde puderam ler os livros e ver os filmes proibidos em Portugal, debater as ideias com a liberdade que lhes era negada no nosso País.
O MAIO DE 68 EM FRANÇA
Em Maio de 1968 rebenta uma “revolução cultural” em França, iniciada por um movimento estudantil contestatário, que depressa se estendeu ao operariado e a outras classes sociais, colocando o País em verdadeiro “estado de sítio”. No dia 18 desse mês a França parou, com manifestações em que terão participado mais de 10 milhões de pessoas (o equivalente a toda a população portuguesa). O Governo francês acabou por ceder a muitas das reivindicações, por forma a reconquistar a paz social.
Esses ventos revolucionários espalharam-se pelo Mundo e também chegaram a Portugal, qual lufada de ar fresco, apesar da censura, sobretudo através de jovens portugueses exilados em Franças, que participaram nesse movimento e que haviam já adquirido uma certa formação e consciência política - que foram passando aos seus colegas, familiares e amigos que estudavam nas universidades portuguesas, bem como a outros que lutavam, clandestinamente, contra o poder estabelecido (os partidos políticos estavam proibidos em Portugal).
O 17 DE ABRIL EM COIMBRA
Foi essa consciência política adquirida por um significativo número de estudantes da Universidade de Coimbra (apoiados também por alguns professores), que levou a que os dirigentes da Associação Académica de Coimbra, na sequência de uma decisão do Conselho de Repúblicas, tivessem solicitado, dias antes da inauguração do novo edifício da Matemática, que um representante dos estudantes usasse da palavra na cerimónia inaugural – o que foi recusado. Mas os estudantes não se deram por vencidos.
Assim, correndo sérios riscos de ser presos pela polícia política, pintaram diversos cartazes com palavras de ordem, e ostentaram-nos à chegada do Presidente Tomás e das outras entidades oficiais – num acto de rebeldia como nunca se vira em Portugal durante os mais de 40 anos que a Ditadura de direita já então contava. Depois, já dentro do edifício, durante a cerimónia, o então Presidente da Associação Académica de Coimbra levantou-se e pediu a Américo Tomás para usar da palavra. Este levantou-se, ficando longos instantes em silêncio, claramente surpreendido com a ousadia, até que respondeu: “Está bem, mas antes fala o Sr. Ministro das Obras Públicas”. A verdade é que mal o Ministro acabou de falar (por curiosidade era o Eng. Rui Sanches, sobrinho de Marcelo Caetano…), Tomás levantou-se e dirigiu-se para a saída da sala, seguido por todas as entidades oficiais. Apesar de na sala estarem vários elementos policiais, incluindo agentes da PIDE, os estudantes reagiram ao incumprimento da promessa, com gritos de protesto e alguns insultos ao Presidente.
CRISE DE 69 CONTRIBUIU PARA O 25 DE ABRIL DE 74
Nesse mesmo dia 17 de Abril, dezenas de dirigentes estudantis foram presos pela PIDE e muitos deles foram logo de seguida incorporados compulsivamente no Exército.
Primeiro em Mafra, depois nos quartéis de todo o País onde vieram a ser colocados e até nas colónias de África para onde foram mobilizados, esse jovens dirigentes estudantis, com uma invulgar formação política e uma cultura superior, começaram a desenvolver uma actividade persistente e discreta de sensibilização dos outros militares, sobretudo os jovens oficiais do quadro permanente, que começaram a entender que a manutenção das colónias era inviável, que a guerra colonial não tinha solução à vista e que Portugal estava a ficar de cada vez mais isolado num Mundo onde os outros impérios coloniais de raiz europeia já tinham concedido a independência às antigas colónias.
Esse trabalho de sensibilização e politização, bem como a coragem demonstrada pelos dirigentes estudantis que ousaram desafiar o regime ditatorial de Salazar/Caetano, viriam a ter uma considerável influência no seio das Forças Armadas, com um papel relevante na posterior formação do Movimento dos Capitães que viriam a pôr em marcha a Revolução de 25 de Abril de 1974, que restituiu ao povo português os direitos, liberdade e garantias, através da instauração de um regime democrático.
Hoje, 45 anos volvidos, apesar de todas as vicissitudes, de todas as dificuldades, temos uma Democracia consolidada, temos liberdade de expressão e de associação, temos partidos políticos e eleições livres, temos um Serviço Nacional de Saúde universal e um sistema de ensino acessível à maioria, as mulheres têm os mesmos direitos do que os homens. Deixámos de estar “orgulhosamente sós”, para podermos orgulhar-nos de integrar as principais organizações internacionais e de sermos elogiados e respeitados pelas outras nações.
E foi assim que, no “Calendário das Revoluções”, Maio surgiu antes de Abril. E Abril em Portugal deixou de ser apenas uma canção famosa, para se tornar no mais marcante momento da nossa História contemporânea.