Maria era gerente-adjunta numa agência e sofreu de episódios idênticos à epilepsia. Desde que largou a banca, sente-se estável. José Carlos ainda vive o pesadelo dos lesados do BES e é ensombrado por pensamentos negativos. Mas o actual presidente do Novo Banco, António Ramalho, garante à SÁBADO que a fase pior já passou
As reuniões de equipa sucediam-se a um ritmo diário, de manhã e à tarde, numa pressão constante: tinham de vender mais e mais produtos e aplicações financeiras, acenando com taxas de juro aliciantes. A primeira era agendada às 08h15, momentos antes da agência bancária da região Centro iniciar o atendimento ao público. Os oito funcionários abriam os cofres, ligavam os computadores e ouviam a número dois da chefia, Maria. A gerente-adjunta, actualmente com 49 anos, tinha ordens claras e números a cumprir.
O briefing matinal do banco privado traçava objectivos de captação de clientes, consoante as campanhas que estivessem a decorrer (havia um produto de eleição por dia). Ao longo do expediente, cada colaborador fazia 20 a 30 telefonemas em modo de telemarketing (o meio mais eficaz de angariar potenciais investidores), além do atendimento ao balcão. Às 18horas, voltavam a reunir-se para a recolha dos resultados. Isto sem incluir a avaliação semanal, ao final da tarde de quinta-feira, em que os responsáveis analisavam o posicionamento da agência face ao ranking geral no grupo.
Com frequência, Maria atendia clientes insatisfeitos e vendia aplicações a contragosto. Do lado de lá, havia quem chorasse ou evitasse o banco em situações de crédito mal parado. "Tenho um feitio complicado e custava-me vender. As pessoas iam atrás da taxa e nós aproveitávamos a ganância", conta a própria à SÁBADO.
A gerente-adjunta ainda protestou perante os superiores hierárquicos, sem efeito. Teve depressões crónicas, reincidentes, sem poder contar com a solidariedade dos colegas. Pior, excluíram-na. Chegou a ser despromovida, fazendo o trabalho de um estagiário.
"Tremia, sentia-me asfixiada"
No pico de stress de Maria, em meados de 2012, surgiam as primeiras manifestações alarmantes: episódios de ausências que duravam, em média, um minuto. "Desmaiava acordada, é difícil de explicar. Na fase inicial não disse a ninguém." Em paralelo, apresentava sintomas idênticos aos da epilepsia. "Lembro-me do primeiro, em que saí do banco, caí para o lado e comecei a estrebuchar. Tremia, sentia-me asfixiada. " À época não se falava em burnout, tão-pouco em desgaste emocional.
Prestes a atingir o ponto de ruptura, Maria começou a crer que encaixava num quadro clínico de epilepsia. Tomou medicação para o efeito, prescrita por um psiquiatra, mas perdeu a vitalidade. "Era um vegetal." Por questões de segurança, deixou de conduzir e passou a ser transportada para o local de trabalho por um motorista da empresa do marido – o que levantou ainda mais suspeitas entre os colegas. Desculpou-se com problemas de coluna. Por fim, acabou internada durante oito dias num hospital público para exames de despistagem. O diagnóstico revelou-se… inconclusivo.
O mal-estar de Maria era indisfarçável. Após o internamento, em Setembro de 2012, foi chamada pela direcção de recursos humanos do banco. Convidaram-na a ir para casa, sem hipótese de refutar. "Reagi mal e piorei." Em Dezembro desse ano, aceitou a proposta de rescisão amigável. Pensou que seria uma catástrofe, que os episódios estranhos suceder-se-iam com mais intensidade.
Nada disso aconteceu, o último episódio idêntico a um ataque de epilepsia foi em 2013. A partir de meados de 2014 começou a reduzir a medicação e a retomar o quotidiano normal. Hoje em dia sente-se estável, conduz e dirige uma mediadora de seguros. Entende que a fase de pesadelo se deveu a uma reacção psicossomática.
Queixas mais frequentes: perdas de memória e crises de pânico
Maria recorre ao apoio do psicólogo Samuel Pombo, há mais de um ano. "A depressão instalou-se após um longo período de exaustão emocional no trabalho. A epilepsia é uma doença que depende, em grande medida, de factores orgânicos e não laborais. No caso concreto, o diagnóstico de epilepsia não se confirmou", explica o especialista à SÁBADO, frisando que "os pedidos de ajuda têm aumentado no Serviço Nacional de Saúde".
Entre as queixas mais frequentes, Samuel Pombo enumera: perdas de memória, stress, irritabilidade fácil, sensibilidade à crítica, queixas somáticas, abuso de álcool, excesso de sedativos e antidepressivos, crises de pânico, sensação de perda de energia e impaciência.
Para o psicólogo, as entidades patronais "fazem tudo ao contrário". Em vez de fomentarem programas de literacia de saúde mental e promoverem o bem-estar actuam de modo inverso. "Apostam, paradoxalmente, numa filosofia de pressão, de exigência e de longas horas de trabalho que derivam em absentismo, perda de saúde mental, insatisfação pessoal e desmotivação profissional."
O especialista acompanha casos de burnout, incluindo em contexto profissional na banca, há mais de uma década. Nestas circunstâncias, aconselha rapidez aos visados. "Devem procurar ajuda o mais cedo possível para prevenir o desenvolvimento de problemas emocionais mais graves e a recuperação seja mais fácil."
A "síndrome do respeito", classifica, pode estar na base do problema. Porventura por questões culturais, a população portuguesa "é pouco assertiva face a pressões de autoridade."
Burnout atingiu 8,2% dos bancários em 2013
A fadiga crónica ou esgotamento severo, vulgo burnout, foi contabilizada por Mário Rui da Silva Mota (representante dos trabalhadores numa instituição bancária). Num dos raros estudos sobre o tema, o autor chegou a um número: 8,2% dos bancários sofria de burnout em 2013. Apesar de reduzido, é um valor "que não pode deixar de merecer reflexão e, naturalmente, de intervenção em saúde ocupacional", diz à SÁBADO o autor da tese e também bancário, de 50 anos e 26 de experiência. A maior prevalência estava na ansiedade: 49,2% dos inquiridos queixavam-se deste sintoma.
Os resultados encontram-se na dissertação de mestrado sobre a saúde ocupacional de trabalho administrativo, apresentada na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova em Setembro de 2013. Mário Rui aponta as causas para o desgaste extremo: um dos aspectos "está ligado à falta de transparência nas avaliações de progressão na carreira"; outro, "à injustiça na forma como os sistemas de avaliação são aplicados." A agravar o quadro, juntam-se "a pressão do negócio e a cultura organizacional."
O questionário realizou-se via online, através da ligação electrónica à plataforma de formulários do Google. Entre Julho e Agosto de 2013, foi distribuído a 5.000 profissionais do sector – do Banco de Portugal, à Caixa geral de Depósitos, passando pelos extintos BES e Banif, Santander, BPI, Caixa de Crédito Agrícola, Montepio e outras instituições mais pequenas. Somente 906 pessoas responderam. O autor não sabe como justificar a baixa taxa de adesão.
Francisco Miranda Rodrigues, psicólogo, alarga o debate à "arquitectura do sistema financeiro". Numa crónica do jornal do Público - O sistema financeiro precisa de ajuda psicológica?, publicada a 31 de Dezembro de 2014 –, o especialista defendia que a banca e os órgãos regulares deviam integrar psicólogos. "Poderiam ajudá-los a exercerem a sua função de forma mais eficaz", escrevia.
Presidente do Novo Banco responde à SÁBADO
"Os casos de burnout já não têm expressão, não temos problemas recentes." A garantia é dada à SÁBADO por António Ramalho, prestes a fazer 100 dias à frente do Novo Banco. Na segunda-feira passada (dia 28), o quarto presidente em pouco mais de dois anos esteve em contacto com os colaboradores para reforçar o estilo de gestão motivacional. A comunicação fez-se em directo, pela plataforma de vídeo livestream, a partir das 16 horas.
Não nega que houve momentos "particularmente difíceis" no período de transição do BES (cujo fim foi decretado em Agosto de 2014) para o Novo Banco. No rescaldo da crise profunda, tem a convicção de que é tempo de estabilizar. "Temos uma lógica de mais comunicação. Precisamos de passar uma mensagem de normalidade."
De 15 em 15 dias, António Ramalho promove um pequeno-almoço com colaboradores específicos no terraço da sede. Semanalmente, sem dia certo, faz-se à estrada para ouvir funcionários de vários pontos do País. A SÁBADO assistiu à primeira maratona, a 22 de Agosto passado (data de estreia no cargo), em que o responsável foi a oito reuniões. Primeira paragem: Leiria, pelo facto de a agência estar numa zona industrial – uma das prioridades do banco, uma vez que esta área representa 56% do negócio. Na ocasião, vincou que o momento era de "incertezas" mas também de "oportunidades."
Quem é o próximo a sair?
O processo de venda do banco "segue o seu curso", diz António Ramalho, frisando que a pior fase já passou. Paula Ferreira Borges, directora de recursos humanos, reitera o presidente. "Não há registo de colaboradores com esgotamentos. Depressões há, mas muitas não estão registadas." Sobre as saídas, a responsável avança que, em breve, vão retirar-se 219 pessoas. "Quando se concretizar a venda das unidades internacionais [em França, Macau, Cabo Verde], prevista até ao final do ano." A meta é chegar a Junho de 2017 com uma redução de 1.500 trabalhadores face a Novembro de 2015 – um compromisso com Bruxelas, caso não se concretize o negócio.
Contas feitas, já saíram 1.048 profissionais do grupo Novo Banco de um total de 7.400, entre Novembro de 2015 e Outubro de 2016. A esmagadora maioria optou por reformas antecipadas e rescisões amigáveis. A selecção dos dispensáveis teve por base quatro critérios: avaliação de desempenho, absentismo, habilitações académicas e custo (salários quando comparados com colaboradores com a mesma função).
A primeira abordagem, presencial, foi feita por uma parte da equipa de recursos humanos (20 elementos do total de 60 foram destacados para o processo) e advogados de uma sociedade externa. Caso os convidados a sair não aceitassem, a solução passaria por despedimento. Aconteceu a 49 pessoas do grupo, notificadas para o efeito em Junho e despedidas entre Agosto e Setembro passados.
O drama da reestruturação – leia-se emagrecimento dos quadros – teve o seu ponto crítico no decorrer de 2016. "Não estávamos emocionalmente preparados. Foi devastador. Muitas vezes chorávamos ao final do dia", conta Paula Ferreira Borges. Por questões sociais, mantiveram 20 pessoas, "em situações familiares de contexto dramático que o banco desconhecia." Exemplos: uma mãe com um filho com deficiência profunda exclusivamente a seu cargo; ou uma grávida com um quadro depressivo crónico.
O caso mais dramático aconteceu no final de Maio, quando um bancário, de 54 anos, se atirou de um nono andar após 29 anos ao serviço do banco. Rescindira contrato com o Novo Banco dois meses antes. Houve ainda colaboradores que não aceitaram as rescisões por mútuo acordo (o processo terminou no final de Abril) e, mesmo sem trabalho, "insistiram em apresentar-se ao serviço", conta a responsável pelos recursos humanos, classificando esta fase de "mais polémica". No início de Maio, a administração tomou medidas drásticas, retirando-lhes o livre acesso às instalações. "Aconteceu com duas ou três pessoas."
"Sofri na pele com clientes periclitantes"
Um funcionário sénior do Novo Banco, que pede anonimato e tem mais de 25 anos de serviço, aguarda o desenrolar do processo com expectativa. Ao longo da reestruturação deparou-se com reacções de desespero, que o atingiram directamente. "Sofri na pele porque geria a carteira dos clientes mais periclitantes." Do lado de lá do balcão, ouviam-se clientes lesados a ameaçarem e a insultarem funcionários. "Vocês são uns vigaristas, filhos da mãe." Uma colega, a trabalhar numa agência do Norte, na província, chegou a ser insultada no café.
Com o clima de instabilidade, o espírito competitivo e o individualismo prevaleceram entre os colegas. "As pessoas atropelam-se. Está enraizada a cultura do egoísmo, a solidariedade e a partilha já não se praticam", lamenta o colaborador. Prova disso foi o "dia de luto" que a comissão de trabalhadores quis implementar a 7 de Abril de 2016, em solidariedade com os colegas afastados. Os funcionários tinham de usar uma peça simbólica, negra - bastava um lenço ou gravata -, mas a ideia revelou-se um fracasso. Contactada pela SÁBADO, a comissão de trabalhadores não acha "oportuno" fazer comentários "face à conjuntura de venda do Novo Banco."
Clientes lesados exaustos com a luta
São 24 horas sob 24 horas com pensamentos recorrentes de raiva, revolta, tristeza e frustração. José Carlos Nunes, 44 anos, resume assim o seu quotidiano e diz que sobrevive à base de comprimidos. Toma oito a dez por dia, entre antidepressivos e ansiolíticos para mitigar o desespero.
O comerciante de arte sacra é um dos 1.019 membros dos Lesados Novo Banco. Trata-se de uma associação criada em Janeiro de 2015 e que se apresenta como mediadora de clientes prejudicados com a venda enganosa de papel comercial aos balcões do BES. Os valores das perdas oscilam entre os 50 mil e 100 mil euros.
Quando perdeu as poupanças, José Carlos recorreu à automedicação até ir ao psiquiatra no início de 2015. O médico fez a pergunta habitual: "O que o traz por cá?". O paciente limitou-se a responder: "Senhor Doutor, sou cliente do BES." Ao que o interlocutor comentou: "Não diga mais nada." O diagnóstico estava feito.
José Carlos atingia, à época, um estado-limite. Sofria de ideação suicida (à semelhança de alguns associados) e perdia a motivação para trabalhar – mas não só. "Sou casado e tenho um filho de 6 anos. Isto afectou terrivelmente a minha vida pessoal e social." À volta, o cenário também era desolador: via lesados a viveram da solidariedade da Cáritas, outros a perderem os empregos após baixas psiquiátricas.
Sendo um dos membros mais activos, José Carlos não perde um protesto (no total fizeram 40 em várias zonas do País). Ainda não recuperaram um cêntimo das perdas, mas acreditam que até ao final do ano haverá uma solução (não o reembolso total), conforme o que lhes foi prometido pelo Governo.
O presidente da mesa da assembleia, Mário Gomes, 45 anos, não tem números concretos dos lesados em burnout mas estima que haja "certamente umas centenas, no que diz respeito apenas ao papel comercial." "Existem casos de pessoas que optaram por termo à vida. São as situações que mais custa a aceitar por sabermos terem sido vítimas do nosso sistema financeiro."
Perante o quadro psicológico negro, a associação tenta angariar formas de apoio – inclusive profissionais especializados. Mas funciona, sobretudo, por interajuda. O diálogo com os companheiros de luta tem ajudado a impedir tragédias. "Acredito que muitas se evitaram assim", assevera José Carlos. Mário Gomes define o movimento como "uma firma de catarse colectiva na qual a grande maioria deposita toda a esperança."
Sindicato alerta para cansaço dos comerciais
Os bancos vivem da confiança dos clientes e, uma vez quebrada, é difícil recuperá-la. Mas as exigências de resultados mantêm-se como antigamente. As pressões das chefias exercem-se, sobretudo, em lugares de desgaste rápido na área comercial. Gestores de conta, gerentes, subgerentes, administrativos e comerciais "interiorizam mais a situação", alerta à SÁBADO António Fonseca, membro da direcção do Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas.
Em tempos de retracção, de recapitalização e de encerramento de balcões - com os serviços online a sobreporem-se aos administrativos in loco -, são os funcionários juniores que saem prejudicados. A banca aposta "em pessoas novas com vontade de progredir." Mas o cenário não é animador, segundo o responsável. "Os bancos Montepio, Popular, BCP e antigo Barclays estão a reestruturar os seus mapas de pessoal com rescisões de mútuo acordo que, às vezes, de mútuo acordo têm pouco."
Sábado
http://www.sabado.pt/vida/detalhe/socorro_estou_exausto_da_banca_portugueses_em_iburnouti.html
Créditos: Sábado - Raquel Lito 30 de novembro de 2016
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