Por Fernando Curado
Foi há 54 anos, em 17 de maio de 1967, pelas 15h55m, na Figueira da Foz.
Uma data histórica para a cidade e para o país, quatro dias depois da visita do Papa Paulo VI a Fátima.
“Mesmo que a vida acabe ali, temos de ir buscar o dinheiro para fazer a revolução”, disse recentemente Camilo Mortágua, um dos assaltantes do Banco de Portugal.
Camilo Mortágua, na altura com 34 anos, já tinha participado noutros atos contra o regime. Em 22 de janeiro de 1961, com apenas 28 anos, participou no assalto ao paquete Santa Maria e, em 10 de novembro de 1961, no desvio de um avião da TAP para espalhar panfletos sobre Lisboa e o Alentejo e, no assalto ao Quartel de Beja, no dia 1 de janeiro de 1962. De seguida viveu clandestinamente no Brasil e depois em França, até que, em 1967, regressou a Portugal e participou no assalto ao Banco de Portugal na Figueira da Foz.
Foram correligionários de Camilo Mortágua (com 34 anos): Hermínio da Palma Inácio (com 46 anos), António Barracosa (com 25 anos) e Luís Benvindo (com 25 anos).
Palma Inácio, nascido em Ferragudo, Lagoa, no dia 29 de Janeiro de 1922, era o operacional mais velho e mais experiente na organização de operações aparatosas contra o regime de Salazar.
Palma Inácio iniciou a luta antifascista com a sua adesão ao Golpe dos Militares, um movimento desencadeado em 10 de Abril de 1947 pelo general Godinho e pelo almirante
Cabeçadas e que contou com a participação de alguns civis, entre os quais João Soares, pai de Mário Soares.
Sabotou os aviões da base aérea da Granja, Sintra, onde havia prestado serviço militar na companhia de Humberto Delgado.
Desviou um voo comercial da TAP, obrigando-o a sobrevoar Lisboa, Barreiro, Setúbal, Beja e Faro, a baixa altitude, lançando cerca de 100 mil panfletos com apelos à revolta popular contra a ditadura.
Como atrás se expôs, o comando operacional que participou no assalto do Banco de Portugal tinha 2 homens com grande experiência na organização de ações contra a ditadura de Salazar, Camilo Mortágua e Palma Inácio.
O comando constituído por Camilo Mortágua, Palma Inácio, António Barracosa e Luís Benvindo entrou em Portugal em fevereiro de 1967. Camilo Mortágua veio de comboio, Palma Inácio e António Barracosa viajaram no veículo de Ângelo Cardoso, de matrícula francesa. Em Portugal juntou-se-lhes Luís Benvindo.
Pelas 15 horas do dia 17 de maio de 1967, os 5 operacionais entraram na Figueira da Foz, num Taunus 17M, com a matrícula CE-56-02, dando início à ‘operação Mondego’. O carro estacionou na Praça General Freire de Andrade.
Ângelo Cardoso permaneceu ao volante, enquanto os outros 4 entraram no Banco de Portugal, eram 15h55. “Ninguém se mexa, isto é um assalto” — avisaram.
Ângelo Cardoso ficou nas vizinhanças da Figueira, que conhecia muito bem pois vivera no Casal Verde (Alqueidão).
Nem tudo correu bem, nunca corre. “De arma em riste”, Palma Inácio entrou no gabinete da gerência, acompanhado de António Barracosa, mas o cofre só abria com duas chaves, na posse dos dois gerentes, Martins de Almeida e Américo Gonçalves.
O gerente Martins de Almeida ausentara-se e tinha uma das chaves do cofre em sua posse. Tiveram de esperar pelo seu regresso, minutos de grande ansiedade, até que soltaram o dinheiro preso.
Retirado da caixa e do cofre, o dinheiro foi distribuído por cinco sacos. Os gerentes foram encerrados na própria casa-forte, enquanto num compartimento contíguo ficou o chefe de escritório.
Os restantes funcionários e clientes ficaram fechados na casa de banho. Antes de fugir, o comando ameaçou “de morte” quem desse o alarme “antes das 18 horas”.
A operação prolongou-se por 25 minutos, mais do dobro do previsto. Saíram do Banco com os sacos das notas às costas, cumprimentaram o polícia no exterior, “boa tarde, está bom, passou bem", e seguiram de carro para o aeródromo de Cernache.
Numa cidade de bem, nenhum polícia poderia imaginar que uma coisa destas pudesse acontecer.
Após o assalto, em pleno dia e sem violência, os 4 operacionais fugiram de Portugal e chegaram a Paris, 2 dias depois, em 19 de maio.
Fugiram de carro, da Figueira da Foz até Cernache, aproximadamente 60 Km, de onde partiram numa avioneta até perto de Lagos.
De Lagos, fugiram novamente de carro, para Espanha, tendo entrado na fronteira perto de Mértola.
José Natário Ramos, estudante, com 18 anos, 7 minutos antes do fecho do Banco, serrou, na Ponte de Maiorca, os cabos telefónicos que a Figueira da Foz utilizava. A cidade ficou isolada e puderam chegar a Cernache, sem contratempos, numa época sem telemóveis.
Palma Inácio, na altura com 46 anos, era já um operacional e um piloto experiente.
Nos dias anteriores ao assalto, Palma Inácio reconheceu em pormenor o aeródromo de Cernache e preparou a avioneta. Nunca levantou suspeitas, porque se fez passar por um arqueólogo brasileiro a estudar as ruínas de Conímbriga. Um verdadeiro “profissional”.
Chegados a Cernache, prenderam o diretor do aeródromo, os guardas e ainda 3 pedreiros que ali trabalhavam. Antes, obrigaram um guarda a encher o depósito da avioneta Auster.
O diretor do aeródromo era Pedro Sá e Melo, estudante do 5º ano de Medicina, que antes tinha voado com Palma Inácio num voo de adaptação à avioneta, e, por esse motivo, esteve preso em Caxias de maio a novembro de 1967 e perseguido pela PIDE até ficarem convencidos que ele nada tinha a ver com o assalto à agência do Banco de Portugal na Figueira da Foz.
O piso do aeródromo estava muito enlameado e o pequeno monomotor Auster teria de levantar com 4 pessoas e um peso imenso de notas por estrear.
"Ninguém tinha a certeza que a avioneta ia descolar, vamos lá ver se isto descola, mas toda a gente preferia tentar do que ficar, de resto, sabíamos que se descolasse teríamos driblado a PIDE”, explicou recentemente Camilo Mortágua.
A avioneta levantou finalmente e "os sacos com as notas foram em cima dos quatro e o piloto Palma Inácio levou um saco nos braços".
Quando a polícia descobrisse o desaparecimento do avião, pensaria que os assaltantes teriam saído do país. "Quem é que vai buscar um avião para continuar dentro do país?".
Palma Inácio voou a baixa altitude até ao Algarve, por forma a evitar os radares.
Entretanto, no Banco de Portugal, 45 minutos depois do assalto, um empregado partiu a porta da casa de banho e libertou os restantes empregados e clientes. A informação, via rádio, chegou à administração do Banco em Lisboa, à PJ e à PIDE que, no próprio dia, revistou o Banco.
A avioneta pilotada por Palma Inácio continuava a voar em direção ao Algarve. Aterraram na herdade do Vale do Paço, a 6 Km de Vila do Bispo, onde eram esperados por Oliveiros Cabrita Gonçalves.
De Vale do Paço a Vila do Bispo, e depois a Lagos, Oliveiros Cabrita Gonçalves conduziu uma viatura alugada, um Opel Kadett, com a matrícula LE-82-54, que foi abandonada junto à praia da Luz, em Lagos, para simular “que a fuga se tinha verificado por mar, tendo como destino Marrocos”.
Em Lagos esperava-os Francisco Barracosa, que conduziu os assaltantes num Ford Cortina alugado, até à zona de Mértola, onde atravessaram a fronteira.
Havia uma pessoa amiga, com um “walkie talkie”, grande conhecedora da fronteira de Mértola, que avisaria a altura própria em que os 4 operacionais poderiam atravessar a ponte. Os fugitivos chamaram-no, mas o “walkie talkie” não respondia. Um dos operacionais foi a pé fazer o reconhecimento do terreno e encontrou-o a dormir, cansado de tanto esperar. O amadorismo estava ali, mas a viagem continuaria.
Atravessaram Espanha e chegaram à fronteira de França. Aqui saíram do carro, e, “a salto”, com os sacos às costas, passaram a fronteira até terra francesa, onde tinham carros à espera.
Os 4 operacionais e o dinheiro chegaram a Paris no dia 19 de maio de 1967. A grande maioria do dinheiro viajou para Paris, mas 10.100 contos ficaram por cá, quando na fuga da Figueira da Foz para Cernache, o 5º assaltante, Ângelo Cardoso, se apeou no ramal para as Alhadas com um saco de notas.
Vinte dias após o assalto começaram as prisões. Ao todo foram proferidas 23 acusações, mas os 7 principais réus foram julgados à revelia. O regime fez questão que o julgamento se realizasse em tribunal comum, para não reconhecer o carácter político do crime. Estratégia oposta foi defendida pelos advogados Mário Soares e Salgado Zenha.
Foram presos Ângelo Cardoso, Joaquim Ramos, José Natário Ramos, Oliveira Gonçalves e Rui Vieira, mas a maioria dos implicados neste assalto e os principais réus foram julgados à revelia em tribunal comum. Camilo Mortágua foi condenado a 20 anos de prisão, a pena mais pesada, Palma Inácio a 16 anos e António Barracosa e Luís Benvindo a 13 anos.
Castor Manuel Ferreira, de 35 anos, marnoteiro, casado, natural do Paião, e Natália Augusta Fernandes Fragoso, de 34 anos, casada, doméstica, do Bizorreiro, foram réus neste processo.
A LUAR (Liga de Unidade e Ação Revolucionária) reivindicou o assalto, para surpresa dos 4 operacionais, porque na realidade a LUAR só viria a ser criada em 19 de junho, um mês depois do assalto, sob a liderança de Palma Inácio.
Mas o assalto não correu como esperavam porque 80% das notas desviadas, aproximadamente 30.000 contos, valor que equivaleria hoje a 10 milhões de euros, foram anuladas pelo Banco de Portugal, por não terem ainda entrado em circulação.
Em 30 de junho de 1967 o Banco de Portugal publicou um Aviso no qual se referia: “…as notas roubadas não foram postas em circulação pelo que não possuem curso legal e poder liberatório, nem são susceptíveis, a qualquer tempo, de reembolso ou troca…”.
Sobraram 7.500 contos, em notas utilizáveis, o que hoje equivaleria a 2,5 milhões de euros.
Sem sucesso, tentaram rentabilizar as notas fora de circulação. Palma Inácio foi aos EUA para as tentar trocar e Camilo Mortágua foi a Israel para comprar armas. Nenhum foi bem-sucedido. No regresso, Palma Inácio foi detido no aeroporto de Orly, a pedido das autoridades portuguesas. Contudo, um tribunal de Paris recusou-se a dar seguimento ao pedido de extradição para Portugal, confirmando que o assalto tivera intuitos de carácter político. No mesmo sentido se pronunciaram tribunais belgas e espanhóis.
Mais tarde, alguns dos fundadores da LUAR, acusaram-se mutuamente de desvio de parte do dinheiro do assalto, envolvendo-se em polémicas que chegaram a tribunal nos anos 90.
Em princípios de 1976, com a vida política normalizada, Palma Inácio dissolveu a LUAR. Viveu modestamente, como um cidadão comum, recusou benesses e privilégios. Em 10 de Maio de 2000 foi agraciado por Jorge Sampaio com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade. Faleceu em Lisboa em 14 de Julho de 2009 com 87 anos.
Camilo Mortágua foi condecorado pelo então Presidente da República Jorge Sampaio com a medalha de Grande Oficial da Ordem da Liberdade da República Portuguesa. Atualmente, com 85 anos, vive em Alvito.
Artigo originalmente publicado pelo Eng.º Fernando Curado e reproduzido, sob autorização, no Jornal dos Bancários n.º 24 de Maio de 2021.